Advogado do Diabo: A Ingrata Tarefa de Defender Anticristo

Postado por Rodrigo Pinder

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Nenhum filme fez mais barulho em Cannes do que Anticristo, inclusive no senso literal: risos e gemidos incrédulos durante os momentos mais chocantes da projeção foram um mero prelúdio para a trilha cacofônica de aplausos e vaias (as vaias venceram) que acompanhou os créditos finais. Críticos estupefatos imediatamente condenaram-no como ofensivo, questionando sua presença entre a seleção oficial do festival; alguns ficaram especialmente indignados ao descobrir que Lars Von Trier dedicara um filme contendo mutilação genital explícita a Andrei Tarkovsky.

A fogueira estava acesa, e o júri ecumênico (cuja função habitual é premiar um filme que promova “valores espirituais e humanistas”) se sentiu na obrigação de despejar mais lenha, desdobrando uma manobra agressiva: Anticristo recebeu um Antiprêmio (lol), por sua “visão misógina.” O júri de verdade, por sua vez, indicou-o à Palma de Ouro e premiou Charlotte Gainsbourg por sua (corajosa, assustadora) atuação. A verdade é que o filme estava fadado a provocar controvérsias e reações radicais do tipo ame-ou-odeie desde sua concepção.

Quando lidando com uma obra extremamente pessoal e totalmente destituída de convenções de gênero (apesar de vendida como “terror”), é difícil tentar impor uma síntese dialética à sua recepção e chegar a um consenso do tipo “fãs de isso e aquilo vão gostar.” Sua apreciação vai depender muito do quanto você se sintonizar com a sensibilidade bizarra do filme. Mas isso não funciona para a mídia, que trabalha com rótulos de caracteres limitados. Afinal, seria Anticristo uma bomba, uma piada, uma obra-prima ou o quê?

Sempre o provocador, Lars Von Trier ativamente se recusou a oferecer insights, assumindo em entrevistas uma postura enigmática (“Não tenho desculpas para o filme além de acreditar totalmente nele – o filme mais importante da minha carreira”) e debochada (“Eu sou o maior diretor vivo”). Mas em notas de produção ele disse algo um pouco mais esclarecedor: aparentemente, o filme foi uma espécie de “terapia” para a depressão da qual o diretor sofria. Vamos refletir sobre isso por um segundo, sim?

Eu falo por experiência própria, e qualquer pessoa que já sofreu de depressão vai confirmar: no fundo do poço, enxergar as coisas de forma racional é tentar pregar neblina na parede. Uma mente fragilizada é um balão cheio de ar, e cada idéia destrutiva serpenteando em seu subconsciente um alfinete. Qualquer movimento em falso e POW – sem perceber, você já está deturpando valores, planejando vingança ou entupindo um parágrafo com metáforas prosaicas.

É fácil desprezar Anticristo como misógino (e, por conseqüência, Von Trier como louco). Você nem precisa ver o filme, na verdade: o último T do título é representado no trailer e no pôster pelo símbolo de Vênus; você pode sair da sala no momento em que ele pipocar na tela, acusando o filme de misoginia semiótica. Mas vamos supor que você decidiu ficar e assistir, lembrando que o Lars fez uma carreira vitimizando mulheres com as quais dizia se identificar:

A história é dividida em quatro capítulos, “Grief”, “Pain (Chaos Reigns)”, “Despair (Gynocide)” e “The Three Beggars”, além de um prelúdio e um epílogo. O prólogo, filmado em lírico preto-e-branco e super slow-mo, apresenta uma perda colossal carregada de culpa intrínseca: o casal de protagonistas (identificados apenas como Ele e Ela) faz sexo apaixonadamente enquanto seu filhinho despenca pela janela numa tentativa frustrada de pegar flocos de neve. O orgasmo é atingido no exato momento do impacto.

A partir daí, somos apresentados a um melodrama bergmanesco com toques de (sim) Tarkovsky, onde Ela sofre de depressão maníaca e Ele (que por acaso é um psicoterapeuta) critica o jeito com que essa depressão é lidada. Como Thomas Edison em Dogville, suas boas intenções carregadas de arrogância têm conseqüências desastrosas: contrariando todas as regras da psicanálise, Ele decide tratá-la, pois “ninguém a conhece como eu”. Vencida pelo cansaço, Ela joga todos os seus remédios no vaso sanitário.

Ele desenha uma pirâmide num pedaço de papel e, ao forçá-la a confrontar os próprios medos, descobre que uma cabana na floresta chamada Eden (wink wink) se encontra numa posição privilegiada, mas não exatamente no topo. Essa não é a única descoberta que ele fará. Um efeito impressionista de árvores em movimento com imagens fantasmagóricas subliminares depois, e estamos na cabana onde Ela havia previamente passado um tempo com o filho para escrever uma tese (nunca terminada, somos informados).

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Em uma série de exercícios psicológicos, Ele chega cada vez mais perto de descobrir o que está no topo daquela pirâmide, mas estaria sua virtuose new age fazendo mais mal do que bem? Quando sua suposta “paciente” tem um surto de libido, fazer sexo com ela talvez seja o menos recomendável, e Ele obviamente sabe disso, o que é enfatizado quando comenta, pós-coito: “Isso não está funcionando.” Parabéns, Sherlock, e aqui nós chegamos a um dos fatos que muitos críticos parecem ignorar: Ele é claramente um completo idiota.

No final de “Pain”, qualquer pretensão de realismo é enfaticamente defenestrada. Se você revirar os olhos no momento em que a raposa falar, sua experiência provavelmente está fadada a seguir ladeira abaixo a partir daí. Como anunciado, Ela é tomada pelo desespero e inflige atos de crueldade cada vez mais macabros e elaborados. Nossa reação automática é achar impossível que Ele consiga sequer se mover depois de toda dor física que sofre, mas aqui vem a parte irônica: por que não pensamos o mesmo sobre a dor psicológica que Ela sentiu?

O gênero feminino não é o “vilão” do filme. A fonte de maldade é a Natureza (o que é telegrafado bem cedo). O “Anticristo” do título não é Ela, mas sim age através dela: animais em cenas grotescas sugerem um mundo criado não por Deus, mas por Satã. A brutalidade, indiferença e inconseqüência da Natureza são idéias sedutoras para uma mente fragilizada. Essa sedução é ilustrada em um plano recorrente que mostra a nuca da vítima. Repare na última vez que isso acontece. E lembre que os olhos de Willem Dafoe são originalmente azuis.

Eu não vou entrar em mais detalhes, mesmo porque, se eu tiver um problema com o filme, é o fato dele se tornar muito explicativo conforme se aproxima do final, mostrando coisas e depois falando sobre elas, o que soa um pouco como justificativa, o próprio conceito que o Von Trier supostamente busca desmoronar com sua abordagem sem compromisso. Eu também não pretendo de forma alguma recomendar Anticristo aqui, o que é minha postura habitual perante experiências ativamente desagradáveis.

Muita gente simplesmente risca a linha em certas coisas, e Anticristo deve conter provavelmente todas elas. Sexo explícito? Pode apostar. Por volta do primeiro minuto, há um plano (belíssimo, nem um pouco erótico) de penetração em extreme close-up. Gore? Que tal uma analogia explícita envolvendo um filhote de pássaro caindo do ninho, sendo atacado por formigas e depois despedaçado por uma ave de rapina? “Blasfêmia”? Se você acredita nesse conceito, o título é suficiente.

Mas seja qual for sua reação às idéias controversas e às imagens explícitas, por mais repulsivos que os atos dos personagens pareçam, não há como negar que, formalisticamente, o filme é o trabalho de um mestre. Esteticamente quase um anti-dogma (exceto pelo jump-cut ocasional), aqui o Lars se vale de todos os artifícios à disposição (iluminação artificial, câmera lenta, props e até CGI) com extrema desenvoltura, criando um mise-en-scene espetacularmente sobrenatural e arrancando atuações espantosas do mínimo elenco.

Sim, Anticristo é em grande parte absolutamente ridículo, e eu não duvido que em outro momento da minha vida eu mesmo o teria desprezado. É perfeitamente possível argumentar que suas idéias e imagens pintam um cenário louco e obsceno demais para justificar a própria existência. Mas seu criador sabe disso, e não faz a mínima questão de esconder. Outra coisa sobre depressão é que ela pode fazer você perder completamente a vergonha de compartilhar suas idéias mais absurdas. Para um cineasta, isso às vezes significa fazer um filme.

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2 Respostas para “Advogado do Diabo: A Ingrata Tarefa de Defender Anticristo

  1. Moral da história: coloquem grades nas janelas, gente. Elas podem ser removidas quando as crianças crescerem.

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