Depressão, desespero e tranquilidade no fim do mundo, tudo ao mesmo tempo

Postado por Fabiano Ristow

“Sookie”

Um fator angustiante para quem já teve depressão de verdade: “Melancolia” a ilustra perfeitamente. Não a introduz, nem a desenvolve, apenas a despeja lá em seu estado mais avançado e cruel, no ponto em que a pessoa não consegue mais se mexer, quando perde noção de consequência ou não se importa mais com ela, ou, como resumiu nosso amigo Rodrigo Pinder ao falar de “Anticristo”, quando “a mente fragilizada é um balão cheio de ar, e cada ideia destrutiva serpenteando em seu subconsciente um alfinete”. Ou você entende, ou acha exagero. Não é exagero. Talvez esse tenha sido um erro do Lars Von Trier. Ele não pede licença para apresentar a depressão. Se você não tem experiência com ela, direta ou indiretamente, será como uma incógnita, um filme com uma personagem misteriosa, ou, como algumas pessoas gostam de definir, “maluca” – porque é mais fácil. Mais uma vez, não que elas tenham culpa. Vai ver o Trier fez mesmo um filme fechado demais. Tanto ele quando a Kirsten Dunst já sofreram com a depressão, e eles sabem que não adianta explicá-la sem parecer meio ridículo e incompreensível para quem está de fora, e não fizeram esforço para desmistificá-la, apenas para retratá-la. Ela existe, é daquele jeito, e é isso.

Com relação aos outros personagens de “Melancolia”, não sei se dá para dizer o mesmo. São muito improváveis. Stellan Skarsgård é um empresário fanático e ganancioso demais, Charlotte Rampling é uma mãe pessimista e amargurada demais, Alexander Skarsgård é um marido bonzinho e compreensível demais, Brady Corbet é um aprendiz manipulável e ingênuo demais, e Kiefer Sutherland é um cunhado insensível e arrogante demais. Talvez a história de vida de cada um deles os tenha tornado realmente assim, mas Trier não dá seus históricos. Mais uma vez dispensa satisfações e você se vê na única saída possível, a de tentar desesperadamente entender com muito esforço e imaginação quem são aquelas pessoas e por que elas são desse jeito. Eu não sei por que Trier fez isso. Talvez ele tenha tido a intenção de criar personagens estereotipados que não devem ser encarados literalmente, e sim sob a perspectiva de uma mente depressiva e deturpada, que enxerga qualquer traço de personalidade como um golpe de faca. Talvez ele tenha cagado a capacidade de compor personagens humanos e identificáveis (não necessariamente realistas) como ele já fez outras vezes como poucos. De qualquer forma, o resultado é que, se você não conseguiu estabelecer simpatia com a Dunst e a sua depressão já no começo, é possível que nessa altura você encare “Melancolia” como uma piada sem graça.

Mas aí tem a Charlotte Gainsbourg, atriz (e cantora) corajosa, que incorporou em “Anticristo” a personagem que é possivelmente a mais intensa, trágica e sofredora de todos os filmes do Trier. Se você sabe que ele é conhecido por submeter as suas atrizes a métodos cruéis durante as gravações, há de se supor que Charlotte tenha conhecido a epítome do que um diretor é capaz de fazer para conseguir o papel que ele quer, e em “Melancolia” ela faz, de novo, com bravura, uma mulher que tem tudo a perder diante da expectativa do fim do mundo. Antes disso, no entanto, ela desponta como o elo que finalmente pode unir o espectador desesperançoso. É o contrapeso da Kirsten Dunst: é uma mulher comum, com entusiasmo para manter as relações e rituais sociais funcionando, mas, ainda assim, uma mulher “normal” no meio de tanta impalpabilidade.

O que é “Melancolia”: um filme dividido em dois capítulos, o primeiro focado na Dunst e num casamento, o segundo na Charlotte e no fim do mundo. A gente sabe que o mundo vai mesmo acabar em algum momento por causa das já famosas e tão faladas composições que abrem o filme como um pesadelo, formalmente impecáveis, verdadeiras pinturas que, se são megalomaníacas, podem ser porque satisfazem a pretensão.

Mesmo que você ignore deliberadamente os milhares de elementos metafóricos e as referências, e também o irrealismo dos personagens e o absurdo das situações, “Melancolia” funciona como um drama, especialmente na segunda metade, impregnada de tensão. Quando o fim do mundo se ameaça próximo, a personagem da Charlotte, naturalmente, cai em desespero, enquanto a da Dunst encontra uma certa paz, mas, mais interessante ainda, uma certa racionalidade, ou, sendo mais preciso, equilíbrio. É hilário quando a Charlotte, tendo consciência do fim iminente, sugere fazer um ritual brega, mas bonito, no momento da morte, e você surpreendentemente espera que o filme vá aceitá-lo, primeiro por causa da sinceridade e urgência com que é feito, segundo porque funcionaria como um payoff dramático para o espectador. Dunst recusa, diz com a lógica que passou a crescer dentro dela que o plano é uma bela de uma bosta. É uma decepção para o espectador. Algumas horas antes ou depois, ela anuncia que sabe que estamos sozinhos, que não há vida em outros planetas e que o fim do mundo provocará um vazio eterno em que não haverá ninguém para sentir falta da gente, só que num tom ateísta de “mas está tudo bem, não tem nenhum problema nisso”.

Dá para tirar algumas conclusões automáticas da oposição entre essas duas metades do filme. A mais fácil é que a “normalidade” existe na convenção e na aceitação dos rituais sociais; você é normal e estável se enxergar os padrões estabelecidos como agradáveis, ou pelo menos corretos. A depressão, ou a “anormalidade”, por outro lado, está do lado do destrutivo, do caos. É confortável então assumir que isso explica a inversão de comportamento das duas personagens entre o primeiro e o segundo ato do filme. O fim do mundo traz horror aos sãos e paz aos insanos.

O problema desse pensamento é que ele também dá margem à interpretação simplista de que a depressão é o Mal. Definitivamente a depressão não é o apropriado para o estilo de vida que o mundo ocidental-cristão-capitalista-whatever leva, e certamente ela é autodestrutiva, mas eu acho que o filme vai além de constatar esse maniqueísmo. Ele mostra que não é preciso lidar com os ânimos como sendo Bons ou Ruins intrinsecamente, mas como estados que estão ou não em sintonia com o ambiente, ou, mais pretensiosamente, com o mundo. Talvez não seja uma mudança de conceito que faça tanta diferença na prática, mas implica numa postura de mais solidariedade e de menos julgamento rápido – o que, lendo dias depois da estreia o que o povo anda falando na Internet sobre a personagem da Dunst (e também na vida real desde muito tempo a respeito de pessoas deprimidas), é exatamente do que as pessoas precisam.

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